quarta-feira, 2 de março de 2011

A “invisibilidade” dos peixes introduzidos em ecossistemas continentais brasileiros: necessidade de ações e o papel dos ictiólogos.


As introduções de espécies, acidentais e deliberadas são algumas das
grandes mudanças globais causadas pelo homem nos últimos séculos, sendo
tão ou mais preocupantes do que o aquecimento global. Tais problemas são
análogos e possuem como a base de suas causas e soluções a sociedade
humana atual. O crescimento populacional humano, o fenômeno da
globalização e o livre comércio intercontinental são alguns dos fatores
que vêm favorecendo as invasões biológicas via agricultura, controle
biológico, água de lastro, incrustação, aqüicultura, entre outras vias,
que têm causado sérios impactos e, o mais preocupante, elevado muito as
taxas de introduções. Tudo isso pode vir a resultar em uma homogeneização
biológica global (Simberloff, 2004, 2006, 2007; Ricciardi & MacIsaac,
2008).
A introdução de espécies é no mínimo a segunda maior ameaça para a
conservação da diversidade biológica, sendo considerada por alguns autores o principal problema para a conservação de peixes de água doce (e.g. Cowx,
2002; Cambray, 2003a; b; Collares-Pereira & Cowx, 2004). Além das mudanças
em escala global a introdução de peixes modifica a estrutura da ictiofauna
local e pode acarretar uma série de alterações e problemas ecológicos e
sócio-ambientais (Vitule et al., 2006). Em se tratando de percepção,
controle ou erradicação, espécies aquáticas encontram-se entre as mais
problemáticas. Neste sentido, os peixes tornam-se graves ameaças, pois são
organismos muito disseminados, móveis, altamente adaptados ao meio e de
difícil percepção e/ou detecção por parte da sociedade em geral. Nas fases
iniciais da introdução, estes podem ser considerados ameaças “invisíveis”,
pois são menos expostos do que a maioria dos organismos introduzidos,
principalmente os terrestres. Assim, se torna comum o fato de introduções
de peixes serem percebidas apenas quando já se encontram em estágios
avançados e/ou os danos causados são irreversíveis.
No trato com espécies invasoras em geral, a ausência de ações rápidas e
efetivas pode resultar em problemas graves e de difícil controle,
principalmente a longo prazo. Neste contexto, catástrofes são
constantemente referenciadas na literatura mundial. Assim, espécies
introduzidas devem ser restringidas e evitadas e, caso elas consigam
invadir um novo ambiente onde são indesejáveis e/ou podem causar danos,
devem ser erradicadas; caso isto não seja possível, elas devem ser
estudadas, controladas e mantidas em níveis reduzidos e/ou aceitáveis. Uma
vez que todas as ações posteriores à invasão implicam em custos econômicos
e/ou sócio-ambientais elevadíssimo, é altamente recomendável a utilização
do princípio da precaução (Simberloff, 2004; 2005; 2006; 2007).
A aqüicultura é a maior causa mundial de introduções de peixes
continentais (Casal, 2006; Gozlan, 2008). A introdução de peixes, por
parte da aqüicultura no Brasil é um fato paradoxal e contraditório se
levarmos em consideração que, apesar de ser uma das regiões
ictiofaunísticas mais ricas do planeta, o país mantém toda sua base de
produção fundamentada em poucas espécies provindas de outros continentes.
Também é imprescindível que se compreenda que uma espécie de peixe pode
ser considerada não-nativa, mesmo quando transportada dentro de um mesmo
país ou continente, de uma bacia ou sub-bacia hidrográfica para outra
(Vitule et al., 2006; Vitule, 2008a; b; Vitule et al, 2008). Isto torna a
percepção ou detecção de peixes introduzidos ainda mais complexa no
Brasil, devido a suas dimensões continentais e grandes bacias
hidrográficas com ictiofaunas diferenciadas, isoladas e/ou endêmicas.
Muitas vezes, os aspectos culturais e o tempo de introdução contribuem
para a “invisibilidade” dos problemas relacionados aos peixes
introduzidos. Mesmo peixes advindos de outros continentes, como as carpas
e tilápias, já se encontram incorporados há tanto tempo no país, que são
considerados “nativos” por muitos pescadores e mesmo por algumas
comunidades ribeirinhas. Tais distorções devem ser corrigidas e evitadas
visto que a introdução de peixes pode vir a causar vários danos ao
ambiente, ou mesmo, pode já ter causado mudanças ecológicas e impactos, os
quais simplesmente ainda não foram percebidos ou verificados. Neste
sentido, para evitar catástrofes irreversíveis em nosso país, os
governantes e tomadores de decisão deveriam estar atentos para algumas
ações prioritárias, como: a) incentivo, fomento e aprimoramento de estudos
científicos e criteriosos básicos sobre as espécies introduzidas no Brasil
e seus reais impactos sócio-ambientais; b) cumprimento efetivo e
aprimoramento da legislação vigente sobre a aqüicultura e o tema de
bioinvasões aquáticas continentais; c) criação, sistematização e
manutenção de uma base de dados nacional completa e integrada sobre as
espécies de peixes introduzidos, criadouros, locais e causas de
contaminação; d) criação e aperfeiçoamento de análises de risco e
exigência de sua utilização para implementação de cultivos ou quaisquer
outras atividades relacionadas; e) implementação de programas de
erradicação e/ou controle de populações de espécies introduzidas,
principalmente em unidades de conservação e áreas de endemismo; f)
conscientização, educação e divulgação do assunto perante a grande mídia,
técnicos, criadores, produtores, legisladores e público em geral; g)
fomento e incentivo ao cultivo de espécies verdadeiramente nativas; h)
fiscalização e/ou controle de matrizes e seus padrões genéticos em relação
às espécies existentes nas proximidades do cultivo; i) conscientização,
educação e fiscalização no sentido de minimizar as probabilidades de
escapes e solturas; j) fomento a debates e cooperação entre os setores
produtivo e conservacionista. Neste contexto a abordagem direta, o
conhecimento e a prevenção são as mais eficazes ferramentas para tratar
tal tipo de problema.
Também cabe a nós ictiólogos repensarmos nosso papel (individual e como
grupo) perante este grave quadro da introdução indiscriminada, falta de
precaução e de ações efetivas quanto à introdução de peixes não-nativos em
nosso país. Certamente podemos e devemos contribuir cada vez mais para que
um controle adequado seja adotado no Brasil.  Cabe a nós atuarmos dentro
de nossas especialidades e/ou habilidades nas mais amplas frentes: 1)
pesquisando os impactos das espécies invasoras sobre a ictiofauna nativa;
2) auxiliando na gestão governamental; 3) colocando o assunto em discussão
dentro de nossos grupos de trabalho; 4) auxiliando na preparação e
manutenção de análises de risco confiáveis e exigindo que tais análises
sejam realizadas quando forem propostas novas introduções; 5) auxiliando
na preparação e manutenção de bases de dados integradas sobre peixes
introduzidos e seu potencial invasor; 6) pesquisando sobre o potencial
sócio-econômico de espécies verdadeiramente nativas; 8) alertando sobre
espécies com baixa resolução taxonômica e extensa distribuição geográfica
e/ou grupos tidos como “nativos” e utilizados de forma ampla em
aqüicultura (e.g. Rhamdia e Astyanax) sem os cuidados e cautela
necessários. Além disso, também devemos atuar como cidadãos educando o
público leigo e não incentivando a utilização de espécies não-nativas em
cultivos, aquariofilia, etc. Também podemos atuar como sociedade e/ou
categoria cobrando e pressionando as autoridades competentes e os
tomadores de decisão sobre uma postura efetiva, ética e coerente com a
magnitude do problema. Neste sentido, os ictiólogos possuem um papel
decisivo e fundamental para as mudanças necessárias no quadro atual, o
qual é insustentável e muito preocupante.
Por fim, devemos nos questionar quanto a algumas questões fundamentais:
Quantas introduções ilegais e/ou sem planejamento têm sido realizadas no
Brasil? Quantas propostas de novas introduções têm sido rejeitadas? O que
é exigido e cobrado de fato do setor produtivo pelas autoridades? Quem
está procurando detectar e/ou avaliar os impactos das espécies
introduzidas? O tempo está passando, não podemos ficar parados apenas
observando, lamentando e/ou nos conformarmos com a situação, devemos agir.

Agradecimentos
Agradeço a Carolina Arruda Freire e Viviane Prodocimo pelo incentivo e
leitura crítica do manuscrito.

Referências
Cambray, J. A. (2003a). The need for research and monitoring on the impacts of translocated sharptooth catfish, Clarias gariepinus, in South Africa. African Journal of Aquatic Science 28: 191-195.
Cambray, J. A. (2003b). Impact on indigenous species biodiversity caused by the globalisation of alien recreational freshwater fisheries. Hydrobiologia 500: 217-230.
Casal, C. M. V. (2006). Global documentation of fish introductions: the growing crisis and recommendations for action. Biological Invasions 8: 3-11.
Collares-Pereira, M. J. & Cowx, I. G. (2004). The role of catchment scale environmental management in freshwater fish conservation. Fisheries Management and Ecology 11: 303–312.
Cowx, I. G. (2002). Analysis of threats to freshwater fish conservation: past and present challenges, p. 201-220. In: M.J. Collares-Pereira, I.G. Cowx & M.M. Coelho (Eds.) Conservation of Freshwater Fishes: Options for the Future. Blackwell Science, Oxford, 462 p.
Gozlan, R.E. (2008) Introduction of non-native freshwater fish: is it all bad? Fish and Fisheries 9: 106–115.
Ricciardi, A. & MacIsaac, H. J. (2008). In Retrospect: The book that began invasion ecology. Nature 452: 34.
Simberloff, D. (2004). Community ecology: is it time to move on? American Naturalist 163, 787–799.
Simberloff, D. (2005). The politics of assessing risk for biological invasions: the USA as a case study. Trends in Ecology and Evolution 20, 216-222.
Simberloff, D. (2006). Invasional meltdown 6 years later: important phenomenon, unfortunate metaphor, or both? Ecology Letters 9, 912–919.
Simberloff, D. (2007). Given the stakes, our modus operandi in dealing with invasive species should be ‘‘guilty until proven innocent.’’ Conservation Magazine 8, 18–19.
Vitule, J. R. S. (2008a). Distribuição, Abundância e Estrutura Populacional de Peixes Introduzidos no rio Guaraguaçu, Paranaguá, Paraná, Brasil. Tese de Doutoramento Apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Biológicas Área de Concentração Zoologia da UFPR. Curitiba. 139p.
Vitule, J. R. S. (2008b). Introduções de peixes em águas continentais tropicais: "é melhor prevenir que remediar". Boletim da Sociedade Brasileira de Ictiologia 28: 8 - 9
Vitule, J. R. S.; Umbria, S. C. & Aranha, J. M. R. (2006). Introdução de Espécies, com Ênfase em Peixes de Ecossistemas Continentais. In: Revisões em Zoologia (eds E.L.A. Monteiro-Filho and J.M.R. Aranha). Vol. 1. Volume Comemorativo dos 30 Anos do Curso de Pós-Graduação em Zoologia da Universidade Federal do Paraná. Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Paraná, Curitiba, Paraná, Brazil, pp. 217-229.

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